Há alguns anos nesse espaço, por semanas seguidas, abordamos diversos temas ligados ao trabalho na chamada de Gig economy ou economia de bico. À época tratamos do trabalho sob demanda via aplicativos, o que passou a ser chamado de Uberização, por conta da popularização do serviço prestado pela empresa Uber.
Falamos também de outra modalidade de trabalho por demanda, que é o crowdwork ou trabalho em multidão, que envolve tarefas como responder a pesquisas, identificar conteúdo nocivo na internet, avaliar elementos de texto, avaliar sentimentos humanos em fotografias, transcrever áudios, bem como de tarefas mais especializadas, como uma criação de uma logomarca, criação de um site, campanhas de marketing ou até um desenvolvimento de projeto de design de interiores. As tarefas são publicizadas na plataforma e disponibilizadas para que os trabalhadores se candidatem a executá-las.
Agora é hora de falarmos sobre outros aspectos da mão de obra utilizada pelas empresas de tecnologia, envolvendo as más condições de trabalho e os salários extremamente baixos pagos para parte dos trabalhadores do setor.
Neste sentido, foi recentemente divulgado que as ferramentas de Inteligência Artificial (IA) têm utilizado esse tipo de trabalho para a calibragem delas. É o caso do popular ChatGPT, o qual, segundo investigação da Revista Time, utilizou-se de trabalhadores do Quênia para treinar os dados de tal ferramenta, ajudando a detectar linguagens inapropriadas, como discursos de ódio, de abuso sexual e que continham violência.
Conforme matéria publicada no portal de notícias UOL, efetuada com dados da investigação mencionada, os trabalhadores prestavam trabalho por intermédio de uma empresa terceirizada, a Sama, que recebia da empresa OpenAI US$ 12,50 por cada hora laborada pelos trabalhadores, enquanto pagava a estes de US$1,32 a US$ 2 por hora, para que lessem e ressignificassem, ou seja, excluíssem os conteúdos impróprios de 150 a 250 textos por dia, os quais continham de cem a mil palavras, em jornadas de cerca 9 horas por dia.
Essa mesma empresa terceirizada, a Sama, já foi alvo de denúncias no tocante ao fornecimento de mão de obra precarizada para o Facebook, pagando salários aos trabalhadores que giravam em torno US$ 1,50 por hora, para realizarem trabalhos que envolviam a visualização e a remoção de conteúdo ilegal ou proibido do aplicativo o Facebook antes que ele fosse visto pelo usuário comum.
Além de trabalho árduo só pela leitura em si, já que é atividade desgastante intelectualmente, os trabalhadores ouvidos pela investigação relatam que ficavam mentalmente perturbados pela atividade que desenvolviam, já que liam textos de violência e abusos que permaneciam na mente deles por muito tempo, gerando, dentre outros, transtornos de estresse pós-traumáticos, depressão e ansiedade, sem que houvesse qualquer assistência por parte da contratante ou das empresas beneficiadas pelo trabalho, no caso, gigantes da área de tecnologia, que estão no topo dessa cadeia de suprimentos.
Esses trabalhadores, apesar de essenciais para a atividade de tratamento dos dados, são submetidos a precárias condições de trabalho, não lhes sendo assegurados todos os direitos trabalhistas, além da remuneração, como mencionado, ser extremamente baixa. Por outro lado, há também denúncias de que tal empresa tem uma política de reprimir qualquer tentativa de formação de sindicatos para a defesa dos trabalhadores da área.
No Brasil também há um mercado de trabalho envolvendo serviços semelhantes para empresas de tecnologia. Em março desse ano, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região reconheceu a existência de vínculo de emprego com uma trabalhadora que prestava serviço para uma empresa de IA de São Paulo, supervisionando o atendimento virtual de um robô e intervindo quando necessário, praticando longas jornadas. Para tanto, recebia R$ 0,11 por minuto, ou seja, R$ 6,60 por hora, pouco mais do que o valor do salário mínimo hora.
A tecnologia, se bem utilizada, pode ser benéfica para todos os integrantes da sociedade. Porém, ao trabalhador deve ser assegurado um patamar mínimo de direitos que assegurem a este uma existência digna, seja por meio do reconhecimento do vínculo de emprego, nos casos em que forem preenchidos os requisitos para tanto, seja por meio de direitos sociais mínimos. Afinal, é importante termos claro que o ser humano enquanto trabalhador não pode ser tratado como mercadoria ou como serviço, devendo ter sua dignidade preservada.
Carla Reita Faria Leal é líder do grupo de pesquisa sobre o meio ambiente do trabalho da UFMT, o GPMAT.
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Tânia_tri BEZERRA 07/06/2023
Muito triste. Vergonhoso para a humanidade. Mais modalidades de exploração. Trabalho humano moderno só na aparência!
1 comentários