ALLAN PEREIRA
Da Redação
Por unanimidade, os desembargadores da Segunda Câmara de Direito Público e Coletivo, do Tribunal de Justiça (TJ), negaram um recurso do Ministério Público Estadual (MPE) para reverter a anulação do decreto que criou o Parque Cristalino II. Ainda cabem recursos ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF) para manter a existência da unidade de conservação, no norte de Mato Grosso, em meio à Amazônia.
Os magistrados concordaram com a ação da Sociedade Comercial e Agropecuária Triângulo, que busca validar propriedade de terras dentro dos limites do parque. A empresa tem como sócio Douglas Dalberto Naves, considerado pelo Ministério Público Federal (MPF) um "laranja" de Antônio José Junqueira Vilela Filho e outros membros da família Junqueira-Viacava, responsáveis por alguns dos maiores desmatamentos já registrados na Amazônia brasileira.
O parque Cristalino II foi criado pelo decreto estadual nº 2628, assinado pelo governador Dante de Oliveira, em 2001. O Tribunal de Justiça já havia decidido por reconhecer a nulidade do decreto. Mas o MPE entrou com um recurso, do tipo de embargos de declaração, na tentativa de reverter a decisão.
Conforme o MPE, o decreto deve ser mantido porque a lei federal 9985/2000 não continha a regulamentação necessária para a obrigação de consultas públicas, pré-requisito para criação de unidades de conservação.
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Além disso, o Ministério Público apontou que um decreto estadual de 1997 é que estava em vigor na época e não trazia como pré-requisito a exigência da consulta pública.
Durante a sustentação oral, o procurador de Justiça Flávio Cézar Fachone apelou aos desembargadores para a importância ambiental do Cristalino II, mencionou as mudanças climáticas e apontou a diversidade de espécies que precisam ser protegidas.
"Sem floresta, evidentemente, traria a diminuição dos chamados rios voadores, via de consequências a chuvas que impactariam o nosso estado e vários outros estados da região e, quiçá, até mesmo em países vizinhos. Poderia falar que essa falta de chuva ocasionado pelo desmatamento dos últimos anos tem causado, como temos observado nos últimos meses, uma queda na produção agrícola por falta de chuva em um patamar de 20 a 30% ou mais. [...]. A nossa perda será imensa e poucas pessoas irão ganhar com isso", discursou.
O procurador também citou estudos de que, em um hectare do parque cristalino, pode haver de 400 a 750 árvores. Caso o decreto seja derrubado, proprietários poderiam desmatar 20% da área, conforme o Código Florestal. Somente essa área legal representaria o desmate de 18,1 milhões de árvores.
Fachone também pontuou que a regulamentação da lei 9985, de como se deve fazer as consultas públicas, só saiu um ano depois do decreto que criou o Parque Cristalino II.
Lucas Eduardo Araújo Silva
jacamim-de-costas-marrons presentes no Parque do Cristalino
No julgamento, a defesa da Triângulo Ltda também teve oportunidade de fala e afirmou que o procurador mentiu durante sua argumentação e que o Estado deveria ter seguido a lei 9.985/2000, que exige a realização de consultas públicas para a criação de unidades de conservação.
"Quero fazer a ressalva que o Parque Cristalino I é sim um santuário intocável. Mas esse parque [Cristalino II] foi criado sob áreas abertas, e não sob um santuário. Foi criado em cima de assentamentos rurais do Incra e do Estado, que tem 1,2 mil famílias", disse.
O advogado também afirmou que Dante criou o parque apenas para receber recursos estrangeiros do banco Inter-Americano, que exigiam a criação de unidades de conservação.
"O MP quer eternizar essa discussão porque perdeu o primeiro julgamento. Fez esses embargos para subir o recurso. [...]. Portanto, o que está em jogo é algo maior do que qualquer coisa que a gente almeja - o respeito à lei e ao princípio da legalidade. O meio ambiente pode muito, mas não pode se sobrepor aos requisitos da lei", declarou.
O relator dos embargos de declaração, desembargador Alexandre Elias Filho, discordou da argumentação trazida pelo procurador Flávio Fachone. O magistrado apontou que o MP tem apenas a intenção de rediscutir a questão já apreciada e decidida pelo órgão colegiado. "Ele não aponta de forma clara a suposta omissão do acórdão e volta com argumentos já debatidos", disse.
Alexandre Elias destacou que o Estado deveria ter seguido a lei 9985/2000, que exigia a realização de consulta pública para criar unidades de conservação, e não o decreto estadual de 1997. "Se existiam normas quanto à realização de consulta pública, é certo de que o Estado deveria pautar sua atuação quanto ao dispositivo da norma federal. O Estado de Mato Grosso sequer poderia legislar no sentido de exonerar a realização de consultas públicas", avaliou.
O desembargador Luiz Octavio Oliveira Saboia Ribeiro reconheceu a preocupação do MPE com a questão ambiental, mas afirmou que as matérias ambientais também precisam obedecer às normativas.
Já Mario Roberto Kono de Oliveira declarou que não viu requisito para aceitar os embargos do MPE. Os desembargadores José Luiz Leite Lindote e Maria Aparecida Ferreira Fago não fizeram declarações e apenas declararam voto seguindo o relator.
A consultora jurídica do Observatório Socioambiental de Mato Grosso (Observa-MT), Edilene Fernandes explica que os desembargadores não concordaram com o MP. “E ignoraram a argumentação de que a consulta para a criação de parque não é um vício insanável, conforme jurisprudência ampla do Superior Tribunal de Justiça”.
Edilene avalia que está nas mãos do Ministério Público e do Governo de Mato Grosso, questionar a decisão. “Eles podem entrar com um Recurso Especial, junto ao STJ e Recurso Extraordinário, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para defender a manutenção do parque. O maior obstáculo está em conseguir que esses recursos sejam aceitos com efeito suspensivo, ou seja, mantendo a UC até a decisão final desses tribunais”.
A diretora executiva do Instituto Centro de Vida (ICV), Alice Thuault, cuja instituição acompanha ao longo dos anos as ameaças às quais o parque está exposto, destaca que a decisão não incluiu uma revisão histórica com o rigor necessário.
“Há jurisprudências de outros lugares que apontam que essa suposta falha, de não haver consulta, o que não foi o caso, não justifica a extinção de parques. Então, esse tipo de decisão pode resultar em desmatamento, aumentando contribuições do Brasil para as mudanças climáticas. Afinal, o desmatamento, que é a transformação do uso do solo, é o que gera mais emissão de CO2 e aumenta a crise do clima”.
Alice destaca ainda que a extinção do Parque Estadual Cristalino II deve repercutir negativamente, frente aos acordos internacionais assumidos pelo Governo de Mato Grosso.
Lucas Eduardo Araújo Silva
“Afinal, na primeira fase de julgamento o governo se omitiu. O compromisso pode ser avaliado aí. Se o governo não interpuser um recurso após a publicação do acordo, isso vai ser uma demonstração se o Estado está ou não zelando pelas unidades de conservação estaduais. Se ele não entrar com recurso, isso mostra que para o governo estadual não faz diferença ou até que o Estado está a favor da diminuição das UCs”, cobra.
Em sintonia, a diretora executiva da Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação, Angela Kuczach, também critica a decisão do TJ-MT. “O que está acontecendo no caso do Cristalino II é um absurdo sem tamanho! Vamos lembrar que esse parque está sendo perdido por W.O., ou seja, pela inação do Governo de Mato Grosso, que à ocasião da primeira decisão, quando teve oportunidade, ‘perdeu o prazo’”.
Ela alerta que é um precedente grave. “Não atinge apenas as unidades de conservação de Mato Grosso, mas todo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. A sociedade brasileira não pode pagar o preço dessa irresponsabilidade, que pode inclusive comprometer o cumprimento de acordos internacionais de proteção ambiental firmados pelo Brasil”.
Em consonância, o secretário executivo do Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad), Herman Oliveira, destaca o valor inquestionável das áreas protegidas. “A sociedade, de maneira geral, os tomadores de decisão, operadores de direito precisam entender que precisamos de unidades de conservação. Elas são necessárias, não só para comunidades de vida, de fauna e flora. O ser humano, como parte indissociável dessa ecologia, também precisa delas”.
Cobrando ações efetivas do poder público, reforça que é preciso uma mudança de mentalidade. “Creio que é preciso olhar para frente e perceber que o Cristalino é necessário, tanto quanto as outras unidades de conservação já criadas, independentemente de quem possa postular suas extinções ou das unidades de conservação a serem criadas”.
Preservação de biodiversidade e laboratório de pesquisa
Criado em 30 de maio de 2001 pelo Governo de Mato Grosso, o Parque Estadual Cristalino II, com 118 mil hectares, está localizado na Amazônia mato-grossense, entre os municípios de Alta Floresta e Novo Mundo. Naquele ano, a unidade de conservação foi anexada ao Parque Estadual Cristalino I, criado em 2000, com 66.900 hectares. Ao todo, são 184.900 hectares de floresta amazônica primária que promovem a conservação da fauna e flora do sul da Amazônia brasileira.
Na região dos Parques Estaduais Cristalino I e II foram identificadas mais de 600 espécies de aves, sendo que 25 estão ameaçadas de extinção, 82 espécies de répteis, 60 de anfíbios, 98 de mamíferos, 2 mil de borboletas, 39 de peixes, além de mais de 1.400 espécies de plantas já catalogadas. Ao todo, são 41 espécies da fauna e flora ameaçadas de extinção e 38 espécies endêmicas.
Além de proteger espécies raríssimas da fauna amazônica, as florestas dos parques estaduais contribuem para o combate ao aquecimento global e a produção de chuvas que são distribuídas no estado de Mato Grosso e sul do Brasil. As unidades de conservação são também um laboratório de pesquisas científicas desenvolvidas por importantes instituições mundiais no âmbito da flora e fauna.
Com informações do Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso
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