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OPINIÃO Sexta-feira, 14 de Março de 2025, 16:15 - A | A

14 de Março de 2025, 16h:15 - A | A

OPINIÃO / ORLANDO PERRI

Pena não é vingança

ORLANDO PERRI



A história da pena mostra que a prisão é uma conquista da humanidade. Não é incorreto dizer que saímos da vingança privada para a vingança social. Entretanto, pouco evoluiu o espírito humano, que ainda se regozija e se deleita com a desdita alheia. É arraigado o pensamento de que o mal se paga com o mal, que a dor somente se aplaca com o sofrimento de quem nos fez sofrer.

Parece que, transcorridos mais de 2.000 anos da passagem de nosso Salvador, quase nada a humanidade aprendeu sobre o amor e o perdão.

Pouco sofrimento não sacia a voraz fome de vingança de uma sociedade cada vez mais aterrorizada pelos discursos de ódio que somente retroalimenta o crime e a reincidência.

Esquecem-se de que os presos de hoje serão nossos vizinhos amanhã.

A ressocialização não se faz por meio de castigos desnecessários. A privação da liberdade é a maior pena que pode sofrer quem infringiu as normas sociais. Esse sofrimento basta ao condenado, e nenhum outro mais tem o Estado o direito de acrescentar ao encarcerado colocado sob sua guarda e proteção.

E se o priva da liberdade porque abusou da liberdade.

A pena moderna se orienta no sentido de ser para o criminoso educação, não dor. Afora o caráter punitivo/intimidativo, o efeito principal dela é a ressocialização do condenado por meio da reforma da sua personalidade, dos seus valores morais e sociais, das suas inclinações para o crime.

Vedadas a pena de morte e a prisão perpétua em nosso país, nosso reencontro com os encarcerados têm data e hora marcadas na sentença.

A política de sofrimento e dor não contribui para a transformação do homem submetido ao reajuste dos valores que o levaram ao seu aprisionamento.

É preciso ter em mente que a pena é um meio para o bem, um instrumento não só de regeneração individual, mas de preservação[1].

Castigo desnecessário embrutece e animaliza ainda mais o homem criminoso, que carece reformar o seu “eu” interior, deformado por conjunturas familiares, pela miséria financeira, social e moral, pelo ambiente promíscuo onde foi criado e forjada sua personalidade.

Não conseguindo o governo brasileiro atacar as causas primárias da criminalidade, a política mais barata é o discurso de endurecimento das penas, e da potencialização dos sofrimentos que a prisão pode oferecer aos condenados, como se se pudesse transformar o homem por meio da imposição do medo.

A psicologia social, de há muito tempo, mostra que não se arrefece a criminalidade com o aumento, com a severidade ou com sofrimento das penas.

A pena não perde eficácia quando se faz mais benigna, mas anula seus efeitos quando é cruel em demasia[2].

Tivessem nossos legisladores mais conhecimento de como se movimenta a natureza humana, compreenderiam que penas mais suaves, quando aliadas à certeza da punição, produzem mais efeitos do que as severas.

O que atemoriza o homem é a vigilância e a certeza da punição. Aliás, Beccaria, ao seu tempo, já vaticinava a certeza que hoje a psicologia social tem de que “não é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança, mas a certeza do castigo, o zelo vigilante do magistrado a essa severidade inflexível que só é uma virtude no juiz quando as leis são brandas. A perspectiva de um castigo moderado mas inevitável causará sempre uma forte impressão, mais forte de que o vago temor de um suplício terrível, em relação ao qual se apresenta alguma esperança de impunidade”.

No senso comum, reina a opinião equivocada de que a severidade das penas refreia as ações do homem com tendências criminosas.

Mostra a psicologia social que aqueles que são ameaçados com punição suave são os que desenvolvem a aversão pela atividade proibida; pessoas que são ameaçadas severamente ficam, no mínimo, ainda mais atraídas pela atividade proibida[3].

Luiz Jiménez de Asúa, na sua época, já havia observado que a pena de morte não é um bom meio de intimidação, e que a interpretação exata da experiência criminal leva à ideia de que ela mais atrai do que intimida[4].

Prova disso é o sistema americano, que não acalmou a criminalidade nos Estados que contam com pena de morte e prisão perpétua.

Se penas severas não sossegam a quantidade de crimes, há lógica em pensar que o sofrimento que vá além da privação da liberdade é capaz de curar ou atemorizar o homem colocado em expiação no cárcere?

O crime se situa sempre no passado e interessa apenas ao processo no exame dos fatos e da culpabilidade do réu. Depois de condenado, deve-se olhar para o futuro do apenado, para a sua recuperação e integração na sociedade após o cumprimento da pena.

Não se podendo consertar o passado, deve-se preparar o futuro do homem privado da sua liberdade.

Basta-lhe essa pena! Nenhum outro sofrimento é justo se lhe impor.

A prisão, em si e por si, é o único e maior castigo que se permite infligir ao condenado.

É falsa a ideia que amiúde se propaga, de que nossas prisões são espaços aprazíveis de recreação, de descanso, de luxo e prazer, verdadeiros resorts que desfrutam os criminosos mais abastados.

Esta é uma prédica que faz eco na patuleia … e dá votos.

Sem nunca terem lido qualquer livro de criminologia ou psicologia social, esses experts julgam-se com autoridade bastante para se manifestar sobre o que conhecem apenas pela opinião do vizinho, do disse me disse. Normalmente são os que creem em tudo e em todos, até na mentira, e dão fé ao primeiro que se encontra na rua.

Falam sem conhecimento de causa, muitos deles sem ter nunca colocado os pés em uma prisão, de ter ouvido o ganir dos prisioneiros, de sentir o odor do enxofre característico do inferno, do cheiro de carne humana que se apodrece no sofrimento granítico e desumano do cárcere. Ignoram as torrentes de lágrimas que lá se vertem todos os dias e horas, decorrentes do arrependimento e da saudade apertada e dilacerante dos entes queridos que também choram em outros cantos.

Bem sei que também choram as vítimas e/ou familiares delas, pela vida perdida ou pela tranquilidade roubada.

Em níveis e graus diferentes, o crime produz vítimas de ambos os lados. É uma guerra onde todos perdem, uns mais do que os outros.

Embora não se possa fazer comparações, meu propósito é contestar as baldrocas, as inverdades, as intrujices, as patranhas, as pataratas e patacoadas, as caraminholas, as fábulas, as petas, a prosa frouxa, mole e desfibrada de que as prisões brasileiras são spas e resorts de criminosos.

De modo geral, são sepulcros de seres vivos!

Nelas, o ambiente é de dor, de sofrimento, de tristeza e terror, de promiscuidade, de violência sexual, de rebaixamento e aviltamento da personalidade já deformada do ser humano.

Pensam alguns ser infecundo reformar o penitente, advogando ser mais útil destruí-lo! Por isso, não podendo aniquilá-lo fisicamente, eles o destroem moralmente, retirando-lhe o que conserva de mais precioso: a sua dignidade como ser humano.

Esta é a mais cruel das vinganças.

Mantêm-no vivo só para fazê-lo sofrer. Ao invés de podar a árvore para ter bons frutos, derruba-lhe o tronco e arranca-lhe as raízes para satisfação do desejo de vingança, sempre insaciável nos torquemadas modernos.

Enquanto a vingança tem seu tópos no passado, a Justiça divisa o futuro do condenado, que não pode ser tratado sob vara de marmelo deitada sob a dignidade do ser humano. O cão que muito apanha, finca seus colmilhos no próprio dono.

Bem sei ser ainda forte, no subconsciente da população, a ideia de expiação da pena mediante sofrimentos. Deve sofrer porque fez sofrer!

As leis de Manu são inatas e vivas no inconsciente humano: “o castigo governa o gênero humano; o castigo o protege; o castigo vigia, enquanto os outros dormem”.

Infligir sofrimentos é manifestação de sadismo, que tem na vingança, na necessidade de fazer sofrer, o outro lado da moeda.

Muitos ainda fazem coro com Hitler: “Devemos ser cruéis, sim, somos bárbaros! […] A consciência é uma invenção judia”.

Triste ver que o sofrimento do condenado aplaca a natureza humana, tão embrutecida ainda.

Nos dias atuais, trocaram-se os tormentos da polé e do pôtro[5] por outros mais eficazes.

Agora se ferreteia a alma do homem naquilo que lhe é mais caro e ingênito em sua natureza: sua dignidade de ser humano.

Mas é justamente essa condição que impõe limites a qualquer ação do Estado, inclusive a punitiva.

Digo à exaustão que o condenado perde apenas a sua liberdade e seus direitos políticos, nada mais! É um cidadão como outro qualquer, com direito à educação, trabalho, saúde e assistência material que lhe assegure condições dignas de sobrevivência no cárcere, enquanto nele permanecer.

A condição de condenado não retira do preso o direito de ser tratado com respeito e justiça, que a sua condição de ser humano obriga a todos observar, principalmente o Estado, aos cuidados de quem é colocado sob custódia.

A circunstância de os nossos presídios estarem infestados por organizações criminosas, constituindo mesmo verdadeiros bunkers das suas lideranças – de onde comandam crimes –, não licencia o Estado a impor o cumprimento da pena em condições que importam em tratamento cruel, desumano ou degradante, proscritas pela Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 5,2).

De maneira geral, os nossos estabelecimentos prisionais são marcados por todo tipo de desventura aos encarcerados, provisórios ou definitivos, pela falta de estrutura e pela superlotação, a que se somam as péssimas condições de salubridade, a falta de assistência à saúde, de fornecimento de material básico, de medicamento e higiene – incluindo absorventes íntimos para as reeducandas –, da precária e insuficiente alimentação de baixo valor nutritivo.

A tanto, acresça-se o isolamento abusivo e as restrições indevidas ao regime de visitas. Tal situação acaba por acarretar, ao fim e ao cabo, o cumprimento da pena em condições cruéis, desumanas e degradantes. Aliás, ao modo como reconheceu a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Yvon Neptune vs. Haiti.

O Poder Judiciário não pode mais continuar a fazer vista grossa a esses desbragados desrespeitos aos direitos humanos.

O Programa Pena Justa vem em boa hora.

Basta de vingança!

*Orlando de Almeida Perri é graduado em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso, com especialização em Pós-graduação Lato Sensu Direito do Estado pela Universidade Cândido Mendes, ex-professor da Escola Superior da Magistratura de Mato Grosso, desembargador do Tribunal de Justiça mato-grossense e supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Estado.

[1] Raymond Saleilles. A individualização da pena, Ed. Rideel, 1ª. ed., 2006, p. 30.

[2] Luis Giménez de Asúa. Psicoanalise criminal. Ed. Losada S/A, Buenos Aires, 1940, p. 147.

[3] Elliot Aronson com Joshua Aronson. O animal social. Ed. Goya, 2023, p. 27.

[4] Ob. cit., p. 121.

[5] Instrumentos de tortura usados na inquisição.

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