A atuação do juiz na interpretação da lei e na avaliação de fatos e provas não deve representar crime, disse nesta quinta-feira (1º/12) o juiz federal Sergio Moro, da 13ª Vara de Curitiba, em sessão que debateu o Projeto de Lei do Senado 280/2016, sobre casos de abuso de autoridade. Ele disse ainda que este talvez não seja o melhor momento para o Senado deliberar sobre uma nova legislação a respeito do tema, quando o Brasil vive operações importantes como a “lava jato”.
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, também participou do debate. E discordou de Moro, citando que a proposta tramita há sete anos no Congresso. “Qual seria o momento adequado para discutir esse tema, de um projeto que tramita no Congresso há mais de sete anos?”, disse o ministro. "Vamos esperar um ano sabático das operações? Não faz sentido algum." O projeto foi apresentado em 2009, mas estava parado em uma comissão. Em junho deste ano, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), tirou da gaveta o projeto.“Faço essa sugestão com extrema humildade. Não me cabe aqui censurar o Senado, mas acredito que talvez não seja o melhor momento, e o Senado pode passar uma mensagem errada à sociedade. Talvez uma nova lei poderia ser interpretada com o efeito prático de tolher investigações”, afirmou.
Segundo a proposta, o abuso acontece quando a autoridade praticar, omitir ou retardar ato, no exercício da função pública, para prejudicar, embaraçar ou prejudicar os direitos fundamentais do cidadão garantidos na Constituição, como, por exemplo, a liberdade individual, a integridade física e moral, a intimidade, a vida privada e a inviolabilidade da casa.
Ao entrar no mérito do projeto, Moro afirmou que qualquer lei que reduza desvios de conduta é bem-vinda, mas há que se ter cuidado para que, a pretexto de se coibir o abuso, a norma não tenha um efeito prático de cercear o trabalho da polícia, do Judiciário e do Ministério Público. “Não importa a intenção do legislador. Diz um ditado que a lei tem suas próprias pernas. Ainda que tenha boas intenções, como será interpretada e aplicada é uma questão em aberto.”
O juiz apresentou ao Senado uma sugestão para limitar a possibilidade do chamado crime de hermenêutica, de modo a evitar que seja configurado crime a divergência na interpretação da Lei Penal e da Lei Processual Penal e na avaliação de fatos e provas.
Segundo o texto do projeto, quem praticar o crime de abuso de autoridade pode ser multado e até preso. Na prática, caso o projeto seja aprovado, delegados, promotores, membros do Ministério Público, juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores que prejudicaram o cidadão indevidamente passam a responder pessoalmente pelo desvio. A lei atualmente em vigência sobre abuso de poder é de dezembro de 1965.
O texto prevê ainda o enquadramento como abuso de casos a ridicularização de inocentes, vulgarização e quebra de sigilo e ordem ou execução de medida privativa da liberdade individual sem as formalidades legais, entre outros pontos. Também será considerado abuso de autoridade fazer afirmação falsa em ato praticado em investigação policial ou administrativa, inquérito civil, ação civil pública, ação de improbidade administrativa ou ação penal pública.
População empobrecida
Gilmar Mendes também destacou na sessão que o foco da criminalização do abuso de autoridade são os excessos cometidos nas periferias brasileiras, e não uma retaliação à magistratura e ao Ministério Público pelas investigações que estão sendo feitas contra políticos e empresários. A opinião foi seguida pelo juiz federal Sílvio da Rocha.
O debate no Senado ocorre no dia seguinte à aprovação do projeto pela Câmara dos Deputados, que foi acusada por juízes e promotores de ter desfigurado o texto original. Entre as críticas estão a inclusão do crime de abuso de autoridade e a ausência de regras que dificultam a prescrição dos processos.
Para o ministro Gilmar Mendes, o projeto é importante, inclusive com a inclusão do crime de abuso de autoridade, pois ele ataca nas duas pontas, combatendo crimes cometidos dentro do poder público ao mesmo tempo em que inibe autoridades de cometerem excessos em investigações e julgamentos. “Entrada na favela sem mandado, é isso que a lei está punindo.”
Sílvio da Rocha seque essa mesma linha, afirmando estar preocupado com os jovens nas periferias e com os advogados que têm suas prerrogativas desrespeitadas. “[A ideia do projeto é] Proteger a população empobrecida, que sofre sistematicamente com abusos das autoridades desse país.”
Outro ponto positivo citado por Gilmar Mendes foram as alterações no texto que tratam do Habeas Corpus. No projeto original, o HC sofria algumas restrições, entre elas a proibição de conceder o instituto de ofício se o réu não estivesse preso. Para Gilmar Mendes, as limitações pretendidas têm uma concepção autoritária.
Sobre o argumento de que a vontade da população foi desrespeitada com as mudanças — as medidas propostas pelo Ministério Público receberam dois milhões de assinaturas —, Gilmar Mendes destacou que não se deve “canonizar iniciativas populares”, pois muitos dos que assinaram o abaixo-assinado não teriam lido o projeto. “Propostas populares devem ser descortinadas, sob pena de aprovarmos projetos como este (10 medidas).”
“A ‘lava jato’ não precisa de licença especial para fazer suas investigações, como qualquer outra operação”, disse o ministro do STF. “Estou absolutamente convencido da necessidade dessa lei. Quanto mais operações tivermos, mais precisamos de limites”, complementou.
Rocha aponta ainda outro ponto importante no debate: apesar de já haver uma lei que pune o abuso de autoridade, o texto dela não traz definições detalhadas sobre os delitos. “O texto da lei em vigor hoje é muito mais lacônico que o projeto apresentado. Para o próprio agente é melhor o projeto que está sendo debatido do que a lei em vigor.”
Repúdio da classe
Muitas entidades representativas da magistratura e do Ministério Público se pronunciaram contra as mudanças feitas na lei. A base de todas as notas de repúdio é praticamente a mesma: a inclusão do crime de abuso de autoridade é uma tentativa de intimidar magistrados, promotores e procuradores.
"O texto aprovado na Câmara dos Deputados destrói o pilar de sustentação do Estado Democrático de Direito, de um sistema de Justiça autônomo e retrocede a capacidade de atuação de juízes e promotores em processos e investigações contra o crime organizado. O projeto aprovado favorece a corrupção e submete a magistratura e o MP ao poder político, transformando em acusados aqueles que lutam contra a corrupção permitindo que sejam julgados por investigados", criticou a Associação dos Magistrados Brasileiros.
"A inclusão, na calada da noite e em momento de luto nacional, dos chamados 'Crimes de Abuso de Autoridade', praticados unicamente por Magistrados e Membros do Ministério Público, com tipificação amplamente aberta e subjetiva, é a mais pura e inequívoca face de um revanchismo de parte da Câmara dos Deputados contra aqueles que têm atuação intransigente no trato dos interesses da sociedade e no combate a ilegalidades", disse a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho.
"A aprovação de tão esdrúxula normativa certamente importaria em sérios constrangimentos de ordem internacional, posto que inviabilizaria apuração de ilícitos praticados contra os direitos humanos, rompendo compromissos formalmente assumidos pelo Brasil. O parlamento age, corporativamente, contra o interesse público! Legisla em causa própria agredindo a sociedade que deveria representar", afirmou o Ministério Público do Trabalho.
"Causa espécie que medidas tão graves, que afrontam o Estado Democrático de Direito, tenham sido aprovadas apressadamente, sem discussões prévias e durante a madrugada, após trágico evento que causou comoção nacional", ressaltou a Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul.
"Já vimos muitos ataques, na história do Brasil, à Magistratura e ao Ministério Público, mas atos de triste memória, como o AI-5 e a cassação de juízes e promotores, foram produzidos nos porões das ditaduras que assombraram o País. O ataque, agora, nasceu em plena democracia e tende a sepultá-la", acrescentou a Associação Paulista do Ministério Público.
"Ao tramitar e aprovar uma Emenda Parlamentar que desfigurou a essência do Projeto de Lei nº 4850/2016, o plenário da Casa Legislativa que representa o povo brasileiro seguiu uma trajetória divergente da vontade de mais de dois milhões de cidadãos que imprimiram suas assinaturas e a esperança na construção de um novo capítulo na história deste país, o da luta contra a corrupção", opinou o Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul.
"Advertíamos, no início do debate sobre o PL 4850/2016, que o atual momento histórico é permeado por paixões afloradas, a afastar a sensatez e serenidade imprescindíveis à construção de instrumentos legislativos que contribuam para o avanço social", ponderou a Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
"O assunto, de suprema importância, merece discussão mais profunda. Foi a discussão profunda com a sociedade em torno das propostas da Força-tarefa que impediu a adoção de artigos que atentam contra o direito de defesa, como o uso de prova ilícita e restrição ao habeas corpus", acrescentou o Instituto de Defesa do Direito de Defesa.
"É clara a tentativa de intimidar e comprometer não só a iniciativa dos promotores e procuradores, como também a própria independência da função judicial, que, segundo Karl Loewenstein, 'significa, ademais, que o juiz, no cumprimento de sua tarefa, há de estar livre de influência e intervenção estranhas, quer provenham do governo, do parlamento, do eleitorado ou da opinião pública'”, disse o Tribunal de Justiça do Distrito Federal.
"As 10 Medidas contra a Corrupção não existem mais. O Ministério Público Brasileiro não apoia o texto que restou, uma pálida sombra das propostas que nos aproximariam de boas práticas mundiais. O Ministério Público seguirá sua trajetória de serviço ao povo brasileiro, na perspectiva de luta contra o desvio de dinheiro público e o roubo das esperanças de um país melhor para todos nós", lamentou a Procuradoria-Geral da República.
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