LEONARDO BORGES STÁBILE
Em que pese vários anos tenham se passado desde a entrada em vigor do Código Civil de 2002, que alterou significativamente o regramento do direito sucessório no que se refere à figura do cônjuge sobrevivente, ainda hoje a matéria é objeto de muita dúvida e discussões, inclusive no âmbito dos Tribunais.
Isto, pois, por quase cem anos vigorou no ordenamento jurídico brasileiro o Código Civil de 1916 que estabelecia regras diferentes no campo sucessório as quais não reconheciam a condição de herdeiro necessário do cônjuge sobrevivente.
Saliente-se que tal reconhecimento fora aclamado pela melhor doutrina, que inclusive já alertava antes mesmo do advento do CC/02 acerca das tendências do pensamento contemporâneo no que tange à personalização do direito civil e da crescente importância da vida e da dignidade da pessoa humana, elevadas à categoria de direitos e de princípios fundamentais pela Constituição de 1988 (Amaral, Francisco. Direito Civil – Introdução. 3ª Edição – Rio de Janeiro: Renovar, 2000, páginas 151-153).
Importante consignar que, no regime da comunhão parcial, são considerados bens particulares todos aqueles que pertencem exclusivamente a um dos cônjuges, em razão do seu título aquisitivo
Pois bem, tal novidade fora inaugurada pelo artigo 1.829, I, CC/02, que estabelece a concorrência do cônjuge sobrevivente com os descendentes na sucessão hereditária, enquanto herdeiros necessários, nos seguintes termos:
“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; (…)” (Grifou-se)
Assim, o cônjuge sobrevivente fora alçado à categoria de herdeiro necessário quando casado no regime da separação convencional de bens, ou, se no regime da comunhão parcial de bens, o autor da herança houver deixado bens particulares.
Importante consignar que, no regime da comunhão parcial, são considerados bens particulares todos aqueles que pertencem exclusivamente a um dos cônjuges, em razão do seu título aquisitivo.
Desta forma, são particulares os bens adquiridos antes do casamento, ou os recebidos por herança ou doação, ainda que durante a união conjugal. São também considerados bens particulares os adquiridos com o produto da venda de outros bens particulares. Os demais bens, adquiridos pelos cônjuges durante o tempo em que estiverem juntos, chamados de aquestos, constituem acervo comum.
Acerca do tema, colhe-se o julgado do Superior Tribunal de Justiça de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão que acertadamente ressalta as nobres razões que levaram a este avanço legislativo no campo do direito sucessório que alçou o cônjuge sobrevivente à figura de herdeiro necessário, cuja ementa segue transcrita:
“O objetivo da regra é garantir o sustento do cônjuge supérstite e, em última análise, a sua própria dignidade, já que, em razão do regime de bens, poderia ficar à mercê de toda sorte e azar em virtude do falecimento de seu cônjuge, fato que por si só é uma tragédia pessoal. A concorrência se justifica justamente por esse motivo, e se coaduna com a finalidade protetiva do cônjuge no campo do direito sucessório, almejada pelo legislador, em histórico avanço, devendo-se observar o princípio da vedação ao retrocesso social.” (REsp nº 1.329.993⁄RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 17⁄12⁄2013, DJe 18⁄3⁄2014). (Grifou-se)
Outrossim, o dispositivo fora também enaltecido pela professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, que destaca a importância de tal avanço à luz da dignidade da pessoa humana:
“(…) E nessa ordem de valores parece ter andado bem o legislador quando elevou o cônjuge e o companheiro a sucessores em grau de concorrência com os descendentes e ascendentes do de cujus, em quota-parte dependente da verificação de certos pressupostos que serão devidamente analisados nos tópicos pertinentes. É que, em fazendo com que o cônjuge supérstite concorra na sucessão do morto, premia aquele que esteve a seu lado até o momento de sua morte sem indagar se este contribuiu ou não para a aquisição dos bens postos em sucessão. Mas não deixa também de privilegiar os descendentes do autor da herança, garantindo-lhes meios de iniciar ou dar continuidade a suas vidas.” (Hironaka, Giselda Maria Fernandes Novaes, Comentários ao Código Civil, vol. 20, coord. Antônio Junqueira de Azevedo, São Paulo: Saraiva, 2003, pág. 14) (Grifou-se)
Ademais, o art. 1.832, CC/02 estabelece, ainda, que quando em concorrência com descendentes comuns, caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança. No entanto, se existirem descendentes não comuns, o cônjuge concorre por cabeça sem a garantia da quota mínima de um quarto.
No ano de 2015, o Superior Tribunal de Justiça sedimentou entendimento acerca do direito sucessório do cônjuge sobrevivente, casado sob o regime da comunhão parcial de bens, enquanto herdeiro necessário no que se refere ao acervo de bens particulares deixados pelo autor da herança:
“RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. CÔNJUGE SOBREVIVENTE. REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. HERDEIRO NECESSÁRIO. EXISTÊNCIA DE DESCENDENTES DO CÔNJUGE FALECIDO. CONCORRÊNCIA. ACERVO HEREDITÁRIO. EXISTÊNCIA DE BENS PARTICULARES DO DE CUJUS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.829, I, DO CÓDIGO CIVIL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. […] 2. Nos termos do art. 1.829, I, do Código Civil de 2002, o cônjuge sobrevivente, casado no regime de comunhão parcial de bens, concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido somente quando este tiver deixado bens particulares. 3. A referida concorrência dar-se-á exclusivamente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditário do de cujus. 4. Recurso especial provido.” (REsp 1368123 SP 2012/0103103-3, S2 – SEGUNDA SEÇÃO, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Relator Ministro SIDNEI BENETI, Julgado em 22/04/2015).
Assim, vê-se que, como regra geral, o direito sucessório vigente estabelece que “onde há meação, não há herança, e onde há herança, não há meação”.
Por isso, no regime da comunhão universal de bens o cônjuge sobrevivente é excluído do quadro de herdeiros necessários, pois a ele é garantida a meação de todo o patrimônio do autor da herança. Por outro lado, no regime da separação convencional, ausente a meação, o cônjuge sobrevivente concorre em igualdade de condições com os descendentes na integralidade do patrimônio deixado pelo falecido. Já no regime da comunhão parcial, o cônjuge sobrevivente concorre com os descendentes enquanto herdeiro necessário na parte em que não lhe coube a meação, ou seja, nos bens particulares do falecido.
No entanto, tal regra geral comporta exceções, como é o caso da separação obrigatória de bens, regime imposto pela lei nas hipóteses previstas pelo art. 1.641 do CC/02, no qual o cônjuge sobrevivente é excluído do rol de herdeiros do autor da herança.
Por fim, importante consignar que em maio de 2017 o Supremo Tribunal Federal concluiu julgamento entendendo pela equiparação entre cônjuge e companheiro para fins de sucessão, inclusive em uniões homoafetivas, oportunidade na qual foi declarada a inconstitucionalidade do art. 1.790, CC/02, que estabelecia diferenças entre a participação do companheiro e do cônjuge na sucessão dos bens.
Foram então afastadas as discrepâncias no tratamento dos regimes da união estável e do casamento pelo Código Civil, as quais ferem e maltratam preceitos basilares do texto constitucional. Desta forma, fora enfim reconhecido ao companheiro sobrevivente o direito à herança dos bens particulares deixados pelo companheiro falecido, em concorrência com os descendentes.
LEONARDO BORGES STÁBILE RIBEIRO é advogado.
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