Carla Reita Faria Leal e Waleska Piovan Martinazzo
Desde o surgimento dos aplicativos de serviços, várias discussões jurídicas são travadas com relação a alguns elementos envolvidos neste contexto, compreendendo desde a natureza do vínculo entre os trabalhadores e as plataformas, ou seja, a caracterização ou não de vínculo empregatício; o regime previdenciário a ser aplicado a esses trabalhadores e os direitos dos consumidores relativos aos usuários em situações envolvendo tais empresas.
O tema é muito relevante, já que, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base em dados de 2022, os aplicativos utilizam a mão de obra de quase um milhão e meio de trabalhadores no Brasil, aí incluindo aqueles que trabalham com o transporte de passageiros (quase 800 mil), entrega de comida e outros serviços. Por outro lado, somente na empresa Uber, de transporte de passageiros, há cerca de 30 milhões de usuários cadastrados no Brasil, isso segundo a própria empresa.
Acontece que o poder judiciário trabalhista virou o palco de inúmeras disputas em volta do tema, em especial, de muitos processos em que trabalhador alega que o contrato havido entre ele e a plataforma é um contrato de trabalho, pedindo as verbas trabalhista daí decorrentes. O tema já chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), onde aguarda apreciação pelos ministros, sendo importante destacar que a matéria, quando julgada, terá repercussão geral, isto é, a decisão será aplicada para todos os processos que discutam o mesmo assunto.
Para tentar solucionar essas controvérsias e a insegurança jurídica causada pela falta de regulamentação, pelo menos com relação aos motoristas que trabalham por meio dos aplicativos, o Presidente Lula encaminhou um projeto de lei complementar (PLC) ao Congresso Nacional no início desse mês de março.
A proposta, que é considerada bastante polêmica, seria resultado de um grupo de trabalho que contou com a participação de representantes do Governo Federal, trabalhadores e empresas, e teria sido acompanhado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), e ainda tramitará na Câmara e no Senado.
Alguns pontos devem ser destacados no PLC. Caso o projeto de lei complementar seja aprovado, será criada a categoria “trabalhador autônomo por plataforma”, ou seja, os motoristas de aplicativos não serão empregados, mas sim “trabalhadores autônomos”.
Em decorrência da prestação laboral e do recebimento de valores, haverá pagamento de contribuição previdenciária pelos trabalhadores, 7,5% da remuneração recebida, e pelas plataformas, 20% também calculado sobre o valor pago aos motoristas a título de remuneração. Com isso, os trabalhadores serão segurados do INSS, com direito a todos os benefícios daí decorrentes.
O PLC também prevê jornada de oito horas diárias para os motoristas, a qual poderá ser estendida até o máximo de 12 horas. Além do valor que será pago pela hora trabalhada, R$ 8,03, com natureza remuneratória e tributado, caso aprovado o PLC, o profissional vai receber o valor R$ 24,07, para ressarcir gastos com celular, combustível, manutenção do veículo, seguro, impostos e outras despesas, montante este que terá natureza indenizatória, ou seja, não terá incidência de contribuição previdenciária ou imposto de renda. No total, a hora trabalhada poderá a chegar R$ 32,10, se contar a remuneração e a indenização, valor que será reajustado anualmente, por índice igual ou maior que o reajuste do salário mínimo.
Por outro lado, ainda de acordo com o projeto, o motorista poderá trabalhar para várias plataformas ao mesmo tempo, não podendo ser exigido dele exclusividade.
Sendo uma categoria organizada, os motoristas poderão constituir sindicatos, entidades que os representarão em negociações coletivas, assinatura de acordos e convenções coletivas e em demandas judiciais e extrajudiciais. Os acordos e as convenções coletivas firmados poderão estabelecer outros direitos além daqueles previstos no projeto de lei.
Outra questão a ser sublinhada é que está prevista a possibilidade de adoção de diversos meios de controles sobre a prestação laboral dos motoristas, como, por exemplo, instituição de normas e medidas para garantir a segurança da plataforma, trabalhadores e usuários contra fraudes, abusos ou mau uso do dispositivo; estabelecimento de normas e medidas para manter a qualidade dos serviços prestados, aí incluindo suspensões, bloqueios e exclusões dos trabalhadores; da utilização de sistemas de acompanhamento em tempo real dos serviços e trajetos; da utilização de sistemas de avaliação de trabalhadores e de usuários, segundo o projeto, sempre visando a segurança e qualidade do serviço.
Por fim, importante salientar que o PLC prevê que as relações entre as operadoras de plataformas deverão ser norteadas por alguns princípios, como o da transparência, da redução dos riscos inerentes ao trabalho; da eliminação de todas as formas de discriminação, violência e assédio no trabalho; do direito à organização sindical, à sindicalização e à negociação coletiva; da abolição do trabalho infantil; e da eliminação do trabalho análogo ao escravo.
A leitura, ainda preliminar do PLC, indica que ele traz coisas boas para o trabalhador, mas outras nem tanto. O que é importante nesse momento é garantir que haja efetiva participação nas discussões sobre a regulamentação de todos os interessados, sociedade, empresas e principalmente dos trabalhadores, o que não tem ocorrido nas últimas medidas legislativas aprovadas pelo Congresso Nacional a respeito das relações de trabalho, a exemplo da Reforma Trabalhista de 2017.
Ademais, importantíssimo realçar o fato de que o centro de qualquer discussão que envolva as relações de trabalho deve ser a dignidade do ser humano que ali busca meios de subsistência para si e sua família, ou seja, o trabalhador.
*Carla Reita Faria Leal e Waleska M. Piovan Martinazzo são membros do grupo de pesquisa sobre o meio ambiente de trabalho da UFMT, o GPMAT.
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