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OPINIÃO Quinta-feira, 28 de Janeiro de 2016, 08:24 - A | A

28 de Janeiro de 2016, 08h:24 - A | A

OPINIÃO / LENIO STRECK

Drible da vaca em Súmula, uniões poliafetivas

O que mais vem aí?

LENIO STRECK



Escrevi há poucos dias criticando decisão de um juiz do Piauí, que decretou uma preventiva com base em enunciado feito em workshop. Mostrei também o exemplo do verbete prêt-à-porter muito utilizado no júri e no processo penal em geral, assim enunciado: “legítima defesa não se mede milimetricamente”. A partir desse verbete-enunciado, pode-se dizer qualquer coisa. Mostrei, com isso, o perigo do uso dos tais “precedentes” de que trata o NCPC. Todos os dias, advogados são vítimas de verbetes citados ad hoc, frutos de decisões teleológicas (finalístico-consequencialistas) nas quais primeiro se decide e depois se escolhe um verbete para “fundamentar”. Trata-se do fator “chama o estagiário para justificar isso”. Ou seja: não se discute o DNA do caso que serve de “fundamento a posteriori”.

O leitor Paulo Adaias Carvalho Afonso — atento assessor do Tribunal de Justiça de Mato Grosso — mandou-me uma situação que simboliza isso tudo que venho denunciando há décadas, desde meu primeiro livro. Lembra que um dos maiores absurdos que ocorre no cotidiano do direito processual penal é o não conhecimento de apelações decorrentes de sentenças do Tribunal do Júri, apenas porque o recorrente não indicou a alínea (do artigo 593, III) que pretende se insurgir ainda na petição de interposição. Costumeiramente, a negativa de conhecimento se dá apenas com a utilização standard da Súmula 713, do Supremo Tribunal Federal, que prevê "o efeito devolutivo da apelação contra decisões do júri é adstrito aos fundamentos da sua interposição".

Disse-me que, pesquisando no site do STF, observou que são mencionados como precedentes ao verbete sumular os HC's 68.878/RJ, 71.458/SP, 71.456/SP, 76.237/MG e 76.338/GO. Só que tais “precedentes” em nenhum momento falam que não se deve receber a apelação quando não for indicada a alínea. Ao contrário, os “precedentes” dizem que a não indicação é mera irregularidade, sendo o efeito devolutivo então delimitado nas razões recursais. Veja-se os exemplos a seguir que não seguem o DNA dos precedentes da aludida súmula do STF, cujos julgamentos tem o condão de colocar o réu anos e anos na prisão, tudo com base em uma súmula sem DNA, citada descontextualizadamente (inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça):

— TJ-CE; APL 0000430­13.2003.8.06.0160/50002;  TJ-MA - Rec 0000815-23.2007.8.10.0058; Ac. 147101/2014: Nos processos oriundos do Tribunal do Júri, a apelação fica limitada ao fundamento constante, necessariamente, na petição de interposição, não sendo permitido incluí-lo, nas razões, ou aí modificá-lo, ampliá-lo ou limitá-lo. A ausência de indicação do fundamento legal deve conduzir ao não conhecimento do recurso. Aplicação da Súmula 713, do STF. Também este julgado do TJ-MG: APCR 1.0718.08.002277-2/001; também tem este do TJ-MS, verbis: Conforme posicionamento sumulado do Supremo Tribunal Federal (enunciado  713 da Súmula do STF), a devolutividade da matéria ao tribunal ad quem nos casos de apelação contra decisões do júri é extremamente restrita, sendo vinculada aos fundamentos apresentados no momento da interposição do recurso. (TJ-MS; RSE 0000827-90.2009.8.12.0032). Tem até apelação não conhecida de assistente de acusação com base no mesmo argumento, como no TJ-GO (ACr 0105418-78.2003.8.09.0006). Ainda: TJ-RN – ap. crim. 133320 RN 2009.013332-0. Mais: TJ-PR ap.crim. 0155874; ap. crim. 1651214. Todos esses julgados indicam como fundamento a súmula do STF. Até o STJ entrou nessa: veja-se o Habeas Corpus 176.362. Também o de n. 182.891. Ainda bem que o STJ tem precedentes ao contrário disso, como é o caso do  HC 258.623. E também o HC 246.354. Bingo. E...ufa! Viram como necessitamos colocar também no CPP o dispositivo que coloquei no NCPC (art. 926 – exigência de coerência e integridade)?

Interessante é que os advogados (e nem o MP) se dão conta dessa questão ligada ao contexto de cada julgado citado. Transformamos o direito em um jogo em que vige a hermenêutica do pistoleiro: quem sacar primeiro, leva. Também vale citar qualquer coisa para justificar algo que satisfaça o solipsismo judicial, como foi o caso do juiz que usou a tese dos “direitos dos manos” (sic) para manter uma preventiva (ler aqui). A moça de Pomerode está fazendo sucesso com sua monografia sobre o direito dos (des)(hu)manos...!

O que é isto — um porco nos ombros de um patuleu?
No meu livro Lições de Crítica do Direito, mostro já na apresentação como funciona a metáfora do hermeneuta na ilha dos peixes sem cabeça. Ali, o trabalho do hermeneuta é detectar o DNA do problema decorrente da ingenuidade dos ilhéus que desperdiçam proteína. Se o hermeneuta não fizer isso, ficará jogando pérola aos porcos (aos ilhéus, no caso). Sequer adianta levar uma nutricionista. Isto porque não há racionalidade no ato dos ilhéus. Só fazendo o revolvimento do chão linguístico em que está assentada a tradição (inautêntica, equivocada) é que o fenômeno poderá ser compreendido. E, uma vez compreendido o fenômeno, o equívoco poderá ser desfeito.

Outro modo de entender isso é a “metáfora do porco nos ombros de um cidadão qualquer”. É mais ou menos assim: Várias pessoas enxergam um sujeito levando um porco nos ombros. Cada um dá o seu palpite: pela roupa que o sujeito está vestindo, trata-se de um furto; outro diz que o porco está sendo levado para cobrir uma porca na vizinhança (achou que o porco é vistoso); já um terceiro diz que houve um escambo (segundo o palpiteiro, coisa muito comum na região); mais outro diz que o porco está sendo levado ao mercado, uma vez que é sexta-feira e sábado a feira vende carne suína; e assim por diante. Só uma coisa não muda: o fato de que há um vivente carregando um porco nos ombros. Qual é o busílis? O busílis é saber qual é o sentido desse fenômeno. Pode-se dá-lo assim, “palpitando”? Claro que não. Somente averiguando a situação hermenêutica (hermeneutische Situation, como diria Gadamer) é que chegaremos ao sentido desse “fato”. O resto é palpite. Pois o jurista, ao se deixar levar por uma doutrina rasa (que quer imitar a velha jurisprudência dos conceitos alemã) e por uma “jurisprudência” prêt-a porter, prêt-a-parler e prêt-a-penser, comporta-se como alguém que se arrisca a dizer “qual é o significado do fenômeno ‘homem com um porco nos ombros’”. Poderá até acertar, comum um relógio parado que acerta duas vezes a hora por dia. Aliás, hoje estamos muito mais para a jurisprudência 
prêt à appliquer, que se transforma em prêt à manger le foie de l'accusé (pronto para comer o fígado do réu) do que qualquer outra coisa.

Sem sofisticar, quero insistir: as coisas só são no “seu sentido”. Não há coisas sem nome (no sentido de sua existência, é claro), assim como não há conceitos sem coisas. Enunciados prêt-a-porter são conceitos sem coisas. E correm o risco de nominar “coisas” sem contexto algum. Sem DNA. Como falei há mais de dez anos, existe uma diferença ontológica entre texto e norma. O texto só é (só existe) na sua norma (seu sentido); e essa só é no texto. E textos são eventos, não apenas frases em uma folha de papel.

O caso da preventiva do Piauí se resolveria diferente se o juiz não desse um palpite sobre “o porco nos ombros”. Do mesmo modo, o tal enunciado da legítima defesa (que não se mediria milimetricamente) teria feito menos estragos se alguém tivesse feito uma desleitura do fenômeno “acórdão do TJSP”. Sim, fazer hermenêutica é “desler”, como diriam Bloom e Stein. Algo como um palimpsesto (como explico em Lições de CHD): uma pintura que cobre outra, que cobre mais uma e assim por diante. Temos de raspar. Raspar as pinturas. Até chegar na melhor. Desler os textos (portanto, desler os fenômenos). Como na metáfora da ilha dos peixes sem cabeça e sem rabo, temos de “procurar a velha senhora”. No direito posso chamar isso de melhor resposta ou resposta correta ou, ainda, como venho referindo, a RAC (resposta adequada a Constituição). Simples assim. Mas muito complexo.

Post scriptum 1: Sobre o “juiz Hércules”
Passou despercebido um equívoco constante na entrevista dominical da ConJur em 17 de janeiro de 2016 (ler aqui). Com efeito, em determinado momento, a professora entrevistada disse que “Existe uma figura que se chama Juiz Hércules, definida pelo Robert Alexy, um pensador genial. Seria o juiz que analisaria sempre todas as questões e todos os conflitos e seria capaz de lutar contra tudo e contra todos para fazer uma decisão absolutamente neutra.” Pedi, por minha conta, para que a ConJur fizesse a alteração na quarta, dia 27. Trocar Alexy por Dworkin. Equívocos ocorrem, certo?

Post scriptum 2: união poliafetiva e a fonte do Direito no churrasco
Pindorama é incrível. O Direito de há muito já não interdita. Qualquer pessoa inventa princípios, fala de costumes (mesmo que seja proveniente de meia dúzia de adeptos) e, com isso, arruma um modo de o Estado lhe dar guarida. Sempre estoura no Estado, essa entidade metafísica. Mesmo que a CF e o Código Civil nem de longe tratem disso. Por exemplo, em nome da afetividade, dos costumes (?), etc, tudo é possível. Logo, logo, haverá união estável entre terráqueos e ET’s (para dizer pouco). Explico o que quero dizer: Li que já estão registrando, em cartórios, uniões estáveis (que, como se sabe, segundo a CF são equiparadas ao casamento) de várias pessoas. Parece que o caso que li tem como fonte de Direito “um churrasco na casa de Rita ou Eustáquio”. Binguíssimo. Para quê votar em deputados? Não é necessário. O Direito nasce do costume. Trata-se de um “trisal” (em lugar de casal — adorei essa nomenclatura: tri-sal!). E eu vou estocar alimentos. E isso logo dará despesas para a Previdência. Quem paga? Simples: a patuleia. A combalida Viúva. Bingo de novo. Chamam a isso de união poliafetiva. Alvíssaras. Por que o resto do mundo não pensou nisso?  Segundo a notícia, parece que a tabeliã que fez o registro (tudo indica que o Judiciário ainda não deu guarida a essa tese – ufa!) está fazendo doutorado na USP exatamente sobre esse tema. Ah, bom. Agora fiquei mais tranquilo. Só uma coisa:  está fazendo pesquisa empírica às custas de uma violação ao Código Civil e à CF? Como assim? Uma tese inconstitucional? Sim, ela conta que já registrou uma união com cinco pessoas. O que dizer disso? Diz a matéria da FSP que, além do registro como união estável, o próximo passo “é acrescentar terceiros (ou quartos, quintos etc.) em planos de previdência e herança, por exemplo” (sic). Viva! Como eu me ufano do direito de Pindorama. Para quê Código Civil? Para quê Constituição? Viva “mores”.

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