LUCAS RODRIGUES
DA REDAÇÃO
O juiz Geraldo Fernandes Fidelis Neto, responsável pela 2ª Vara Criminal da Comarca de Cuiabá, afirmou ao MidiaJur que é necessário "mexer na ferida” do sistema penitenciário. O magistrado, que é responsável pela execução penal, disse que se o preso não tiver trabalho dentro da unidade prisional e que possa ressocializá-lo, para retornar ao convívio da sociedade, “ele retorna ao crime, rouba e trafica para se manter e sustentar os filhos”.
Geraldo Fidelis foi categórico ao dizer que a “falta de condições dignas de saúde e oportunidade de trabalho aos mais de 9.500 detentos dentro dos presídios mato-grossenses contribui para que haja uma alta taxa de reincidência ao crime, que gira em torno de 83%”.
Segundo Fidelis, é preciso agir para quebrar a ideia, "que é verdadeira, de que nossas cadeias são universidades do crime. Entra um trombadinha, que furta, sai de lá um latrocida".
Para ele, a falta de investimentos no sistema penitenciário evidencia que “estamos marcando gol contra, contribuindo para ter crimes no futuro”.
Fidelis assumiu a vara em fevereiro deste ano e tem nas mãos a responsabilidade de acompanhar as execuções penais dos reeducandos da Penitenciária Central do Estado (antigo Pascoal Ramos), Centro de Ressocialização do Carumbé e do presídio feminino Ana Maria do Couto May.
Em pouco mais de seis meses de gestão, o juiz informou que tem conseguido colocar a vara nos eixos do ponto de vista administrativo e processual. Ele garantiu que tem articulado com o Estado e representantes de diversos municípios para implantar um sistema baseado no APAC (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado), que vigora há 17 anos em Minas Gerais (MG) e tem diminuído a reincidência em terras mineiras a taxas menores que 7%.
Em entrevista ao MidiaJur, o juiz titular da 2ª Vara Criminal da Comarca de Cuiabá (Vara de Execuções Penais), Geraldo Fidelis, também falou sobre os projetos para a vara, superlotação, realidade dos detentos no Estado, falta de equipes psicossociais e a dificuldade de reinserção do detento na sociedade.
Confira os melhores trechos da entrevista:
MidiaJur - O senhor assumiu a segunda vara criminal agora em fevereiro. Em que situação a vara se encontrava?
Geraldo Fidelis - Bem, antes de mim haviam passados 15 juízes para cuidar desta vara. E cada visão é diferente uma da outra. Os colegas que aqui passaram fizeram um trabalho muito relevante, mas são 15 cabeças, 15 pessoas que, muitas vezes, não possuem a mesma sequência de pensamento. Estou procurando fazer uma gerência dos trabalhos aqui, junto com o sistema prisional, articulando com o Ministério Público, com a Defensoria Pública, com a própria comunidade. O que busco é não apenas jurisdicionar os processos que aqui se encontram, mas também praticar as políticas públicas para buscar a raiz do problema. Não queremos só fazer administração de processos, temos que mexer no cerne, na ferida.
MidiaJur – E qual seria essa ferida?
Geraldo Fidelis – É a de dar ao preso um tratamento sério e firme, mas com dignidade, com respeito, com direito ao trabalho e educação dentro do presídio. Quem é condenado está lá para cumprir a pena, mas cumpri-la com dignidade, não apenas ficar um punhado de gente de maneira ociosa, apenas pensando besteira. Temos que quebrar essa ideia, que é verdadeira, de que nossas cadeias são universidades do crime. Entra um trombadinha, que furta, sai de lá um latrocida. Porque não tinha nada para pensar. E a execução tem que se basear em trabalho, educação, religião e família. E também temos que nos focar na saúde do reeducando, das pessoas que lá trabalham, das famílias que vão lá visitar e voltam para os bairros trazendo doenças de lá de dentro. É de total interesse da sociedade a atenção à questão penitenciária.
MidiaJur – A forma como o sistema prisional é conduzido hoje atinge o objetivo principal, que é reeducar o preso?
Geraldo Fidelis – Hoje nós estamos marcando gol contra, contribuindo para ter crimes no futuro e temos que modificar isso. Em Mato Grosso, de cada 100 presos que saem das cadeias, 83 voltam para o crime. 83% de reincidência. Isso quer dizer que, em presídio que tem 2000 pessoas, como a Penitenciária Central do Estado, já se tem agendado 1260 crimes. É marcado. Em um município como Cuiabá, que possui mais de 3100 presos entre mulheres e homens, temos 2660 crimes agendados. E é aí que está o problema e devemos nos focar. Como? Dar trabalho para eles lá dentro, buscar dar melhores condições de saúde para as mulheres que vão lá, os servidores e nós do Judiciário, que acabam levando para a sociedade as doenças que lá existem, como a tuberculose a as Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST’s). O Estado tem que dar saúde para esse pessoal. Eles erraram e têm que pagar pelo erro, mas de forma digna e respeitosa. Nosso sistema hoje é totalmente insalubre, não há saúde lá dentro. Porque o que está aí não pode ficar, por isso buscamos parcerias com hospitais visando até a terceirização, talvez. A superlotação também agrava isso ainda mais.
"Temos que quebrar essa ideia, que é verdadeira, de que nossas cadeias são universidades do crime. Entra um trombadinha, que furta, sai de lá um latrocida"
MidiaJur - Falando em saúde, em junho um detento morreu vítima de tuberculose na Penitenciária Central do Estado e outras dezenas foram diagnosticados com a doença. O senhor tem acompanhado esta questão?
Geraldo Fidelis – A Vara da Execução Penal determinou que se fizesse o isolamento das pessoas portadoras de tuberculose, além de um acompanhamento ao ministrar o remédio, porque após 10 dias tomando o remédio, a pessoa não passa mais a doença. Mas temos que observar que é uma doença transmitida pelo ar, é muito sério. Isso aconteceu durante o mutirão, e todas as providências foram tomadas.
MidiaJur - O mutirão carcerário realizado em junho trouxe melhorias na prática?
Geraldo Fidelis – Foi feito um levantamento com todos os presos do Estado e, com base nisso, vamos articular políticas públicas para atender as necessidades e sanar os problemas detectados. Não dá para promover melhoras sem ter dados precisos da real situação carcerária. Observamos que a questão de saúde está muito séria, entrevistamos as pessoas que estavam doentes, colocando em risco nossa própria saúde. A sociedade tem que saber que o investimento nesta área é importante porque estamos investindo no não cometimento futuro de crimes. Para que assim ela dê oportunidade o ex-detento que queira trabalhar, porque se isso não acontecer ele volta ao ciclo e retorna ao crime, rouba, trafica para se manter e sustentar os filhos.
MidiaJur – E como a sociedade recebe o ex-detento?
Geraldo Fidelis - Ela não recebe. Vira as costas. Dizem: “Ah, é preso? Preso bom é preso morto. Nessas rebeliões podiam morrer todos. Porque dar dignidade ao bandido que matou meu filho, que roubou minha casa?”. Esquecem que aqui no Brasil não há pena de tortura, pena de morte. Nenhuma pena é perpétua, tem prazo. Ao chegar o dia da liberdade, a pessoa ficou anos sem trabalhar, vai trabalhar depois? Não vai. E a pessoa é discriminada, porque não se contrata a pessoa que ficou anos sem trabalhar. Não está sem razão a sociedade. Porque o que tem que ser mudado é o lado de dentro dos presídios. A questão prisional é muito delicada. Precisa estruturar dentro do presídio para que este sistema mude
"A cadeia não é um purgatório, um estoque de gente, ao ter o seu direito, o preso deve ser libertado, senão causa revolta, causa rebelião."
Geraldo Fidelis – Eu visitei outro Estado, Minas Gerais, e conheci um sistema chamado APAC (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado), que é uma entidade de iniciativa privada que trabalha em parceria com o Estado para fazer a gestão de execução penal. Com este sistema, o atual índice nosso de reincidência, que é de 83%, poderia baixar para 7%, como acontece em Minas há 17 anos. Lá eles estão dando um tratamento digno aos funcionários do sistema e também aos reeducandos, para que o investimento não seja feito apenas na construção física, mas sim na conduta humana, aos reeducandos e às equipes de segurança.
MidiaJur - Qual o resultado disso?
Geraldo Fidelis - Conseguimos um contato muito estreito com a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH) do Estado, viajamos junto com eles e estamos trazendo para Mato Grosso, não só para Cuiabá, três unidades estilo APAC. Os prefeitos de São José dos Quatro Marcos, Primavera do Leste e Campo Verde já demonstraram interesse no APAC, também há interesse de trazer este modelo para Cuiabá. Nós estamos fazendo contato junto ao CNJ para trazer o PRONATEC dentro das cadeias, para que os presos, quando ganharem a liberdade, terem como se sustentar sem depender do crime, ganhar dinheiro lícito. Eu e o Dr. Jorge Tadeu, da corregedoria, vamos ao CNJ no dia 20 de agosto para cobra o PRONATEC no Estado. Porque o Governo Federal está fazendo muita propaganda e precisamos de mais ações. Temos também uma fundação que já ministra os estudos dos reeducandos, em parceria com o Sebrae, Senac e todo o “Sistema S”.
MidiaJur - E com relação ao resultado obtido nos mutirões carcerários?
Geraldo Fidelis - Fizemos mutirões, apesar de eu não gostar deste termo, e identificamos o perfil do reeducando para individualizar a aplicação da pena de acordo com a necessidade. Fizemos também visitas constantes às cadeias da região para tentar aplicar a verdadeira ressocialização, que é a humanização do sistema. Fizemos uma visita no Centro de Ressocialização do Carumbé e constatamos in loco a péssima qualidade da comida que estava sendo servida, até apelidaram a comida de “arroz com boi ralado”, porque era um pozinho de carne em cima de um macarrão frio. A partir disso, o corregedor-geral da Justiça, desembargador Sebastião de Moraes, determinou uma nova licitação para este serviço e hoje é oferecida uma comida de qualidade muito superior por um preço inferior.
"Dizem: 'Ah, é preso? Preso bom é preso morto. Nessas rebeliões podiam morrer todos. Porque dar dignidade ao bandido que matou meu filho, que roubou minha casa?'. Esquecem que aqui no Brasil não há pena de tortura, pena de morte"
Geraldo Fidelis – Havia 17 casos aqui em Cuiabá de detentos que já estavam com a pena vencida, mas ainda precisavam passar por exame psicossocial ou criminológico, mas há falta de psiquiatras. Estamos dando dinâmica nos processos para que quando o preso for contemplado, possa receber sua liberdade, sem ficar esperando. Temos um problema na questão das equipes psicossociais. Temos que nos organizar para dar maior dinamicidade para estas equipes. Cuiabá tem três equipes psicossociais. Cada equipe faz 6 exames por semana, o que resulta em apenas 18 exames por semana, enquanto há uma fila de 200 pessoas. Pessoas que já estão com o direito senão já vencido, para vencer. A cadeia não é um purgatório, um estoque de gente, ao ter o seu direito, o preso deve ser libertado, senão causa revolta, causa rebelião.
MidiaJur - E com relação aos presos que já cumpriram parte da pena em regime fechado e podem solicitar o semiaberto?
Geraldo Fidelis – É feito automaticamente. Inclusive, isso faz parte do nosso sistema de computador. Quando vai chegar a pena, dispara o alarme para que se adiante o exame psicossocial e nos deparamos com o problema de falta de equipes. Sugerimos á SEJUDH que faça parcerias com faculdades para buscar psicólogos de lá e compor as equipes.
MidiaJur - Qual a periodicidade dos acompanhamentos nos presídios feitos pela vara?
Geraldo Fidelis – É mensal, mas se precisar comparecemos em casos extraordinários, estamos sempre à disposição.
MidiaJur - Quanto à superlotação, qual é a realidade hoje no Estado em números?
Geraldo Fidelis – A situação está horrível em todo o Mato Grosso e em todo o Brasil. A Penitenciária Central do Estado tem 890 vagas e já tem cerca de 2000 pessoas. O Centro de Ressocialização do Carumbé tem 470 vagas e possui 1000 detentos. O presídio Ana Maria do Couto tem 180 vagas para 270 presas.
MidiaJur - Com base nestes números, seria viável a construção de novos presídios ou reestruturar os já existentes?
Geraldo Fidelis – Tem que mudar o método, construir sim. Temos condições de ter em Mato Grosso o Sistema APAC, com um tratamento humanizado, onde se recupera. Mas também há espaço em Mato Grosso para construir um presídio de alto nível.
"A situação está horrível em todo o Mato Grosso e em todo o Brasil"
Geraldo Fidelis – Esse problema não é de Cuiabá ou de Mato Grosso, é nacional. A sociedade é uma usina de crimes, não há vazão para o número de crimes em relação ao espaço disponível nas cadeias. É uma questão social, não de má gestão, apesar de a gestão ter sua influência. O que precisamos é de gestões impositivas, para colocar na prática o que já foi detectado até o momento.
MidiaJur – Quantos processos tramitam atualmente na vara?
Geraldo Fidelis – Cerca de 2600 processos. São em maioria de pessoas que estão presas em regime fechado. Os processos estão bem encaminhados, estamos fazendo um trabalho de enxugar os trabalhos e não há reclamação específica. Acredito que seremos piloto, futuramente, da Vara Digital em Mato Grosso. Aqui vai ser a primeira vara da Justiça com todos os processos digitalizados. Quem vai fazer isso é a Corregedoria-Geral de Justiça com a aplicação de um novo programa de computador, que será implantado em breve.
MidiaJur - Em 2007, esta vara foi investigada sob denúncias de corrupção, onde funcionários estariam a exigir vantagens para dar andamento nos processos. O senhor teve conhecimento deste fato? Sabe que medida foi tomada em relação a isso?
Geraldo Fidelis – Eu não tenho conhecimento, até por estar aqui há pouco tempo. Todos os funcionários aqui são novos, o mais antigo tem pouco mais de um ano. Daquela época, não há mais ninguém.
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